Stella Dias

Professora de Português - SEEDUC/RJ, Prefeitura de São Gonçalo - RJ e Centro Moderno de Ensino - Niterói/RJ.

Instagram

Publicado em 28 de setmbro de 2023.

BR-116


Precisava espairecer após um término de relacionamento. Como que num ímpeto para rearrumar a vida e ir ao encontro da paz e de encontro com a ausência, resolveu dirigir por aí. Sempre teve preferência pela Região Serrana, por talvez os locais compreendidos lhe mostrarem que o céu é o limite.

Escolheu Miguel Pereira para ir. Uma amiga havia lhe feito um convite: a festa de 15 anos de sua sobrinha. Ainda que não tivesse um super vínculo com a menina, até mesmo pela distância entre sua moradia e Miguel, aceitou a proposta, porque a ideia era sair de casa de qualquer forma. Aliás, ficar em casa, principalmente em viradas do avesso para se aturar, não era a melhor coisa. A rua a chamava, era sedutora, e com certeza nela encontraria companhia para sua fossa ir embora. 

Ponte, Linha Vermelha...ah, rememorar os tempos de faculdade já a fazia se sentir em casa, a relembrar os momentos dentro do 485 lotado indo para Copacabana, onde morava na época, após um dia inteiro de cheiro da Baía de Guanabara que adentrava a sala de aula. Ela sentia o cheiro de podre vindo daquelas águas sem cura por puro desinteresse.

Após longos quilômetros na via que percorre bairros e municípios que nos violentam sem qualquer motivo, Diana chega à BR-116. 

O sentimento de liberdade tomou-lhe o corpo e, com a mão para fora da janela, buscava pelo vento a libertinagem gostosa que sentia na juventude e nos corredores da UFRJ; a sensação de estar só, tentando entender porquê nos últimos tempos as adversidades invadiram sua vida e desta não queriam sair; fizeram de sua essência a morada quase que permanente. 

A estrada, que recebia o som das paralelas de Belchior, mostrava a Diana as bifurcações que a levavam à dúvida, mas ela se esqueceu de que esta representa um não e o negócio é seguir. Rumar para um universo sem destino para ela mesma ressignificar o destino. 

A BR-116 foi ficando para trás. Com ela, as lágrimas, as angústias, mas também as boas lembranças que extasiaram Diana por longos anos e que lhe revelavam a juventude. Agora era hora de pegar Japeri e mudar o nome da estrada: RJ-125, rumo a Miguel, seu lugar de sonhos, e curtir a tal festa de 15 anos. Nada que uma boa cerveja, uns salgados e um hotel velho não pudessem fazer pelo seu ser, tão exaurido das mesmices. 

Publicado em 16 de setmbro de 2023.

Vermelho e branco

À vó Carmen (in memoriam)


Minha infância foi colorida pelo vermelho e branco tão preferidos de minha avó Carmen, esta que tinha poema em latim, memórias afetivas a borbulharem sobre minha existência, e um amor inenarrável com a minha presença. Para o trabalho me carregava, às escondidas; muitas vezes brinquei de boneca no vestiário do Hospital Souza Aguiar enquanto ela atuava na emergência a dar banho em mendigos do local e a catar-lhes piolhos.

Nossa diversão esperada era o 20 de janeiro. Católica como era, a procissão de São Sebastião, que saía da Igreja dos Capuchinhos, deixava-a extasiada, fazendo questão da minha companhia, eu, a neta tão adorada e talvez até mesmo esperada, mesmo não tendo sido planejada. 

Ficávamos envoltas de fitinhas inúmeras nas barraquinhas que prosperavam em  vendas; as tais fitinhas, fossem elas vermelhas ou brancas, ganhavam significado quando amarradas em nossos braços, com três nozinhos, cada um representando um pedido. “Não pode tirar essa fita do braço, minha neta, deixe ela arrebentar sozinha.” 

E assim cumpria o pedido. 

Começava a caminhada pela Rua Haddock Lobo, a peregrinação por aquele local rodeado de comunidades que festejavam o padroeiro do Rio, em prol da fé no santo flechado. Minha avó fazia as orações enquanto percorria aquela rua, que vai até o Estácio; eu a olhava tentando entender o poder daquelas orações e para que ela fazia isso, mas eu, com o espírito de rua, adorava e contemplava aquele festejo todo, aquela procissão lotada de fiéis em busca de soluções para os seus problemas cotidianos. Após o Estácio, a passagem pela entrada do Morro de São Carlos, transitávamos pelo antigo Félix Pacheco, local onde indigentes ganhavam existência e enfim chegávamos ao Catumbi, passando perto da Mineira, da ida para a Zona Sul, pelo Sambódromo. Ali, o êxtase se confirmava com a mistura de ritmos, com o sincretismo religioso, era orixá junto com santos, e a união permanecia por São Sebastião. Por Oxóssi. Pela caça à justiça. 

O túnel era o divisor dessas águas que fluíam com perfeição, em uníssono. Avenida Henrique Valadares, Avenida Chile...e finalmente a chegada à Catedral. A eminência do santo homenageado. As várias vozes crentes despertavam em meu olhar a certeza de que eu estava no lugar certo, porque para mim tudo aquilo era a festa que habitava em mim. Orações ao alto, corações ao alto, estávamos em Deus, eu e minha pequena avó. 

A última vez que vi o vermelho e branco foi em um sonho com minha Carmen. Ela estava vestida com essas cores, feliz da vida, entre São Sebastião e São Jorge, entre Oxóssi e Ogum.

Meu poema físico não está mais aqui há 11 anos, mas a poesia permanece como uma festa que ainda habita em mim. A festa carioca, de Oxóssi, de São Sebastião do Rio de Janeiro. O legado de vó. O legado vermelho e branco. 

Publicado em 12 de agosto de 2023.

São João

À Lena Dias (in memoriam)


Éramos quatro mulheres em torno da serenidade que povoava um corpo falecido. Em meio a rezas e reflexões, à oração de São Francisco de Assis, chorávamos com a certeza do alcance da paz daquele que há muito sofria. Nos ares de Botafogo, finalmente, ele descansou. O motivo de se buscar o abraço de São João Batista: seu marido e sua mãe ali residiam e gostava de perambular por ruas da Zona Sul, pois nelas sentia a juventude mais aguçada e dona de si mesma. Envelhecer não fazia parte de qualquer reconhecimento. O quanto pode adiar esse momento, adiou, com idas e vindas às praias, bate-papos com um chopp e bons beijos na boca. Era um corpo vivo, que enlouquecia com os prazeres das ruas e que enlouqueceu sua mãe dentro de casa, lá do outro lado do Rio, em Cascadura.

Fizemos um cortejo em torno daquilo que agora era sua morada; longos foram os caminhos dessa jornada, cujos túmulos eram admirados por nós naquele fim de tarde de um 19 de maio. Procurávamos ler principalmente as datas de nascimento e de falecimento para calcular com quantos anos a pessoa faleceu, até que...

CADÊ  A COROA DE FLORES QUE MANDAMOS FAZER?

Olhamos para cima. Já estávamos chegando ao local do sepultamento e a coroa não estava ali. “Não, não é possível que o brucutu da funerária não deixou com os funcionários da Rio Pax a tal da coroa... misericórdia!”

Dá-lhe ligação. 

“Funerária Jardim do Méier, boa tarde”

“Boa tarde. O seu funcionário não deixou aqui a coroa de flores que mandamos fazer. Onde se encontra? Já estamos chegando ao local do sepultamento!”

“Resolverei isso, senhora.”

Chegamos ao local. Éramos agora umas 10 pessoas, entre amigas e funcionários da Rio Pax no aguardo do indivíduo trazendo a coroa de flores. Lá da quadra 29, onde o corpo ia ficar, dei de cara com o por do sol abençoado pelo Cristo Redentor e por São João Batista. Por um momento esquecemos da coroa e batemos fotos, quando olhamos para baixo e nos deparamos com o ser correndo igual um louco com uma pesada coroa nas costas. A cena era inusitada, com um homem menor talvez que a própria coroa de flores, tentando chegar o quanto antes pelas vielas do cemitério. Ao chegar, ironias rolaram e ele, sem vergonha alguma, entregou o que era de interesse e foi embora. Ele tinha esquecido a nossa homenagem no furgão...

Finalmente deu-se o momento do nunca mais. 

Descemos após as 17h. Pelas vielas, conversávamos a respeito da vida e do quanto ela mereceu ficar num local tão privilegiado: na Zona Sul do Rio, com um por do sol inigualável. 

“Ué, nos perdemos... cadê a saída?”

A noite estava caindo e o nosso medo engrandecia numa proporção que até uma estátua de um mausoléu ganhou vida. Sim, ela se mexeu, temos certeza! Começamos a correr por aquelas ruazinhas entre túmulos, e pisar nas coroas ressecadas, caídas perto de sepulturas, foi pitoresco. Nem as ruas do Centro eram tão fúnebres na madrugada! 

“Ah, o carrinho do caixão! Finalmente um funcionário do local para nos salvar!”

Enfim, chegamos à entrada onde tudo começou. Olhamos para a esquerda e nos deparamos com a sepultura de Selaron. Turística como a sua escadaria na Lapa. Colorida como foi a vida de muitos que ali jazem. 

No fim das contas, mais gargalhamos que choramos. Em meio às desventuras em série e ao desrespeito total ao local, quebramos protocolos e fizemos jus ao que esse corpo feminino que velamos mais fez: sorrir. O que era para ser um dia que só queríamos esquecer, passou a ser parte do inesquecível.

Publicado em 15 de julho de 2023.

Cheiro da noite

São 7h30 da manhã de um domingo e eu caminho pela Rua do Riachuelo, rumo a uma corrida de rua. Estacionei no bairro de Fátima, longe do evento, mas foi melhor para até aquecer um pouco caminhando até lá. Está um dia ensolarado, em que as formas dos Arcos ganham mais vida do que já têm, mesmo que lembrem o noturno quando tudo acontece.

O passado veio à tona: de setembro de 2015 até junho de 2016 morei na Rua André Cavalcanti com uma vista pitoresca para os morros de Santa, e achava aquilo o máximo, porque morar na Lapa era onda e ainda é. Tive sim o privilégio de poder morar ali, numa quitinete super exótica. Diferentemente do destino de mulher, eu era recém-separada, trabalhadora e da rua. 

Naquelas vias conhecidas no Brasil e no mundo, pude curtir minha solteirice. Por ali percorri bebendo minhas cervejas, fumando um cigarro ali e aqui, uma vida de esbórnia. Conseguia conciliar meu trabalho com essas vontades, esses prazeres, envoltos de uma decepção aqui, pela carência da separação, uma decepção lá, pelas expectativas criadas. Ainda assim, todas as vezes que me deparava com os Arcos, seja pela manhã ou à noite, sentia-me liberta do tal destino que assola tantas mulheres; nada arrependida de ter me separado, ainda que meu ex-marido seja um homem íntegro e de boa índole. Eram apenas objetivos diferentes marcados por 15 anos de diferença entre nós. 

Buscava a todo custo sair para a night, convidava toda hora uma amiga para ir a um boteco, ao Bar do Peixe na minha rua. Sentia-me mulher na plenitude nessa época; podia sair e voltar para casa a hora que queria sem dar satisfação a qualquer macho alfa, macho escroto, esquerdomacho etc etc...são muitos títulos e nem dou conta de tantos que já passaram pela minha vida, sejam como amigos, sejam como ficantes, sejam como namorados. Entretanto, o sentimento de culpa por ter chegado aos 38 anos sem uma família construída me destruía e meu gênero tão feminino gritava de dor. 

Sentia que precisava sair daquele local para conquistar a tão sonhada família.

Confraternização de fim de ano na casa do meu pai. Jardim Catarina, São Gonçalo, do outro lado da poça. Olha daqui, olha de lá. “Ele será o pai do meu filho”, pensava. Maternidade martelando na minha cabeça. “Preciso ser mãe”. Fui. Ele foi embora.

Hoje caminho pela Rua do Riachuelo sentindo o cheiro da noite que me completava há 6 anos. É o odor de urina dos bêbados, da cachaça dos embriagados que a deixaram escorrer pelos ralos, das fezes humanas deixadas pelos miseráveis ou pelos playboys de plantão. Eu ria em demasia. Como que num frenesi, meu êxtase de existência ficava em ebulição. Mas não se multiplicava, era efêmero.

A busca pelo multiplicar teve que atravessar a Ponte Rio-Niterói para alimentar o meu desejo de mulher. Ele está satisfeito para sempre, obrigada. E nada arrependido.

Mas não esqueço o cheiro da noite.