Publicado em 17 de junho de 2023.

Melissa Coelho Xakriabá

Carioca, indígena da etnia xakriabá, mãe solo e atípica, atriz, bonequeira e contadora de histórias. Atualmente trabalha como redutora de danos pelo SUS, e tem se debruçado em linguagens artísticas que abordam temas  como saúde do trabalhador, violência institucional e em territórios vulneráveis, racismo estrutural e os desafio da inclusão. Como educadora social, sua prática tem enfoque na educação decolonial e em estratégias anti-bullying em instituições de ensino.

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Ela acordou de madrugada sem vontade. Não era a primeira vez. Há muito já não tinha vontade. Levantou e se trancou no banheiro graças à forca do habito. O hábito tinha mais força que qualquer um de seus músculos. Estava sozinha em casa. Olhou-se minutos inteiros no espelho. Estava quebrado desde de... De... Estava marcado o dia, mas o calendário se perdera no meio de tantos outros papéis, boletos, contas, comprovantes, rabiscos. Com um dos pedaços do espelho ela havia feito aquele corte. Os outros cortes eram de outros pedaços. Pedaços recortados de momentos e contextos diversos. Enquanto o tempo se arrastava, as cobranças chegavam. O tempo espiralado e instável e cobranças diretas e implacáveis.

Ela se perguntou se deveria comer alguma coisa. Abriu a velha geladeira, mas só encontrou biscoitos murchos, um saché de tempero fora da validade e uma maçã podre. Poderia ter sido a maçã da branca de neve, se ela fosse branca, se conhecesse neve, e se tivesse posse de um poderoso veneno de bruxa.. No máximo ela seria a Parda do Barro. Ela era parda porque nada conhecia de história política, de árvores genealógicas, e assim lhe disseram que devia preencher nas fichas. "Nesse país é todo mundo pardo.", ela ouvira uma vez. E como, reparando bem, ela não queria e nem deveria ser diferente de todo mundo, decidiu que todo mundo tinha razão. 

Quando criança fazia bichinhos de barro. Morara em uma área muito precarizada, onde geralmente faltava água e a escola ficava tão longe que já chegava lá cansada e com fome.

E ela já tinha certas dúvidas desde a mais tenra infância. Às vezes na escola sentia o choro se avolumando nos olhos e na garganta. Sentia um vazio que era tanto e tão consistente que a preenchia. Mas se chorava, quase sempre alguém perguntava que motivos tinha uma menina tão bonita para chorar. Já desejara ardentemente ser feia para poder chorar em paz. Mesmo que na opinião de sua mãe esse negócio de paz fosse na verdade uma "criação de algum religioso que não tinha mais o que fazer da vida."

Sua mãe tinha opiniões parecidas sobre a maioria das coisas abstratas. Para ela a felicidade também era uma "tolice inventada por essas pessoas que não tem mais o que fazer da vida". A mãe fora uma mulher de poucas palavras, poucos sorrisos e muita ação. E ela se questionava enquanto observava aquela mulher carrancuda como seria uma vida em que nada se tem para fazer. Aquilo, para uma menina observadora e inquieta como ela, deveria ser libertador! 

Voltando ao espelho, ao banheiro com tranca, à geladeira desabastecida, ela teve dúvidas de qual ano estava. Quanto tempo se passara desde que... Desde de... Todo aquele sangue esparramado. E ela imaginando quanto tempo levaria para limpar tudo, e qual produto de limpeza seria o mais eficaz. Talvez a vizinha faxineira soubesse. Mas elas pouco se falavam porque a vizinha andava sempre as voltas com seus cinco filhos e a olhava torto porque entendia que não havia muito assunto a tratar com uma mulher que não havia parido. 

Que bom que não fora mãe. Não teria idéia do que dizer a um filho. Nem pequeno, e muito menos crescido. Não queria repetir para nenhuma criança o que ouvira na infância. Nem queria que homem algum repetisse com um filho seu o mesmo que passara com seu pai na infância. Ela fora como a princesa do conto A Princesa e a Ervilha, só que sem título, sem coroa e sem colchões. Apenas a ervilha, que sequer era ervilha. Era um pedregulho.

Era mentira essa ideia de que não dá para mentir para si mesmo. Claro que dá. Basta repetir uma vida inteira a mesma máxima e logo esta se torna mais real do que a realidade, até porque a realidade já era um conjunto de mentiras coletivas passadas por gerações e gerações.

Ela olhou em volta de si. Como um satélite orbitando. E só viu buracos negros. Provavelmente passara por algum portal para outros mundos, e saira da zona captada pelos instrumentos terrestres. Estava afundada no meio do nada.

De qualquer forma , algo ali cheirava mal. Mesmo muito distante do reino da Dinamarca. Algo ali fedia horrivelmente. Desde que... De.... De onde vinha aquele odor pútrido? Abriu armários, escancarou gavetas, afastou as cortinas para ver o Sol, mas não havia sol. Seria noite já? Seria noite ainda?

O trinco da porta estava arrombado. Como não notara antes? Vozes ecoavam. De quem seriam as vozes? Uma criança corria de olhos vendados em câmera lenda. Uma mulher gritava e gritava. A mãe da criança, talvez. Um homem, ou seriam dois, ou trés? Homens haviam isolado a área do banheiro. Parecia uma cena de filme desfocada. 

O cheiro afinal.... Era dela mesma! Estariam eles sentindo? Viu um vizinho fazendo o sinal da cruz. Ela reconhecia, embora o pais fosse laico, sua escola também, mas a diretora exibia uma Bíblia enorme de capa dourada em sua sala no último andar. Lembranças dançavam descordenadas em sua cabeça. Onde estaria ela mesma naquela cena onde sumira até mesmo o espelho? Alguém estava afastando pessoas da cena do crime... Digo, do filme. Digo, daquilo tudo. De perto de.... De... O que era aquilo? Um bicho revirado, com pelos por cima da cara? Era um sonho?

Não era sonho. Não era pesadêlo. Nem filme sequer. Ao mexerem no corpo do tal bicho revirado, ela entendeu. E começou a identificar as falas. "Tão jovem e...", "Sempre achei ela esquisita então...", " Não tinha nem namorado...", Jovem esquisita", " A mente humana é uma caixinha de surpresas mesmo" 

Não, não é. Nada surpreendente. Desde a mais tenra infância. Sem surpresa alguma.