Kelly Gularte

Professora de escola pública, cronista e doutoranda em educação. Reside em Porto Alegre/RS

Publicado em 22 de julho de 2023.

Em memória a uma linhagem órfã 


Era uma vez em uma região da campanha gaúcha, lá pelo ano de 1940, contextualizando o período, eram mais ou menos sessenta anos pós-abolição da escravatura e momento em que Getúlio Vargas, gaúcho, filho de estancieiros, ascendia para presidir o Brasil. Neste sentido, contarei uma história, que segundo Djamila Ribeiro  no livro O que é lugar de fala de 2017, a autora menciona que “se não se nomeia uma realidade, sequer serão pensadas melhorias para uma realidade que segue invisível”. 

Havia uma mulher preta, chamada Maria, que segundo histórias orais, relatam que ela veio caminhando da Bahia até o Rio Grande do Sul. Chegando na região da campanha, começou a trabalhar como cozinheira em uma fazenda. Lá, conheceu João, ambos analfabetos, dadas às informações do censo de 1956, que demonstram que mais de 70% da população brasileira não sabia ler nem escrever na época. João era um faz tudo na fazenda. Se apaixonaram. Tiveram filhos: cinco mulheres e três homens, oito descendentes na verdade. 

A família proprietária desta fazenda era branca e composta de um casal que tinha quatro filhos: três meninas e um menino. Eram oriundos da capital Porto Alegre/RS. Todas as crianças relatadas tinham idades semelhantes, e eventualmente, ir para a fazenda era um lazer, e brincar com os pretinhos e pretinhas filhos da cozinheira, que hora sumia, hora aparecia era rotineiro, pois o detalhe, é que a cada dois ou três filhos, minha avó Maria, saía a andarilhar por lugares indefinidos. 

Lá pelos anos de 1960, Maria infartou, João ficou sozinho com os oito filhos, e no trabalho braçal da fazenda. O que se sucedeu? Cada sinhazinha e sinhozinho pegou uma ou duas pretinhas para criar e levar para suas residências originais longe da fazenda: duas vieram para Porto Alegre (uma delas era minha mãe), duas foram para o Rio de Janeiro, outra para Montevidéu e sei lá por que, três ficaram. Desses últimos três, uma era a mais velha e se encarregou de cuidar dos dois irmãos mais novos. Por que será que os três irmãos ficaram na fazenda? Será uma leve semelhança ao Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre?

O que se pode pensar que ocorreu com estas jovens pretinhas que foram viver com famílias brancas, nos anos 60, oriundas todas de um país racista, e que omite o silenciamento das múltiplas identidades desta terra? Será que estas jovens “adotadas” tiveram as mesmas oportunidades educacionais, sociais, culturais que as filhas e o filho  deste casal de fazendeiros tiveram? 

Não. 

Estes filhos da elite branca concluíram o ensino superior, tiveram empregos bem remunerados e tempo para produzir arte. Todas estas moças apadrinhadas que foram se tornando mulheres, eram consideradas “da família”, até a morte de todas elas, pois todas faleceram muito cedo. Eram domésticas, essas afilhadas tinham seu quartinho de 1x1, comiam na cozinha, chamavam os patrões de madrinha e padrinho e tinham salário. Não concluíram o 1º grau, atual ensino fundamental. Destas cinco mulheres domésticas, duas delas no final dos anos 70, casaram com homens pretos e continuaram suas vidas, carregadas de dificuldades financeiras, num período ainda de ditadura, e com suporte desta família branca quando o cinto apertava. Eventuais encontros de aniversário e natalinos destas famílias brancas ocorriam, e presentes para os descendentes destas mulheres pretas (netos e netas – e eu, os chamava de avós) faziam parte do protocolo. 

As outras duas, seguiram as atividades de empregada doméstica por décadas. Uma delas teve um filho, foi mãe solteira, e revelou quem era o pai, apenas aos 60 anos de idade. Adivinha? Um sobrinho da sinhazinha se aproveitou da pretinha virgem de 18 anos. Com o passar da idade, minha tia se aposentou e exigiu sair do apartamento em que vivia, trabalhava – sendo que o filho com necessidades especiais a ajudava nos afazeres domésticos. Portanto, na metade dos anos 90, essa mulher teve sua alforria, porém, ainda presa financeiramente (uma vez que a família sabe do débito infinito que possuía). Truques ou não da vida, quando minha tia morreu, nos anos 2000, este filho passou a morar com uma destas “irmãs de criação”, e ela o tratou como filho de verdade até a morte dele em 2021. A outra infartou. A quinta pretinha foi a única que teve um destino com mais equidade. Estudou, era técnica em prótese dentária e está viva até hoje, com 80 anos. Não casou, segue no Uruguai, e está terminando sua velhice. 

Meu avô morreu, no final dos anos 90, cego e velhinho, na campanha onde sempre viveu. Na região, ficaram os outros três. Eram pobres, começaram a trabalhar cedo, atravessaram suas dificuldades tomando café com farinha de mandioca, imagino algo semelhante à narrativa de Carolina Maria de Jesus no livro Quarto de despejo, de 1960. Essa pretinha criou seus dois irmãos mais novos. Os três casaram, tiveram filhos e morreram há bastante tempo. Conheci esta tia quando eu tinha onze anos de idade,lembro que ela tinha uma narrativa de que ela, eles passaram trabalho, mas estavam juntos, e isso bastava.

Mesmo com as trajetórias difíceis relatadas, meus antecessores, os oito filhos de Maria e João, lutaram para que seus filhos e filhas tivessem uma vida de independência, e guardo minha mãe com muito orgulho, e hoje, a terceira geração, é constituída de adultos como eu, e nem de longe, passamos por tal ficção. Os sucessores atuais superaram estes contextos, e incentivam à quarta geração a lembrarem do seu passado e a conquistarem o seu lugar.


Texto publicado em 21/07/23 na Revista Poetizar (v.1 n. 3 - UFES)

 

Publicado em 29 de abril de 2023.

Sala de professor@s, uma etnografia


Sou professora, não sou Geertz ou Malinowski, mas resolvi observar as 3 salas de professores nas 3 escolas onde leciono. As condições de produção desta crônica etnográfica tem a duração de um clique, no turno da manhã, anterior ao soar o sinal escolar. As 3 escolas se localizam em lugares distintos: cidades diferentes, com contextos, concepções, pressupostos específicos, e que, no entanto, estão todas atravessadas por uma pandemia global, com diversos protocolos de distanciamento controlado, com milhares de casos de pessoas infectadas com COVID-19 e dezenas de mortes, onde muitos sujeitos possuem diferentes entendimentos sobre esta difícil realidade pandêmica.

Quando cheguei nas salas, disse um “Oi” coletivo para todo o grupo, todos me olharam, mas apenas os colegas com quem tenho maior aproximação pessoal e profissional retribuíram ao meu gesto de cordialidade. Na outra, são poucos os profissionais que lecionam neste turno, então todos nos cumprimentamos. Na terceira, um professor logo diz: “vamos logo trabalhar e outra professora destaca "vamos ver o que meu horóscopo diz para o dia de hoje" e começa a procurar tal seção no jornal.

Alguns(mas) colegas dizem esse oi de forma escandalosa, vibrantes, gritando, outros nada dizem, outras são mais discretas. Há um professor que chega cantando MPB: "...muita calma pra pensar, e ter tempo pra sonhar…". Nas outras duas salas, os grupos são mais silenciosos, calmos, andam devagar, o primeiro gesto de todos, todas e todes, incluindo eu mesma, é passar o álcool gel na mão e colocar o dedo no cartão-ponto eletrônico. Há uma professora que entra, animada ao ver que sua cesta com bergamotas está vazia, pois a mesma as colhe nos seus pomares e as compartilha com o grupo semanalmente. Após este movimento, com Paulo Freire em todos os lugares, pelo menos metade do grupo, reclama do frio, e devido à pandemia, não há cafezinho nem chimarrão à disposição.

Cada um no seu passo, se dirige ao seu armário, retira livros, chamadas, apagador, giz, caneta, álcool gel, enche garrafa de água, olham whatsapp e depois se jogam no sofá.

Neste lugar agenciado com a mesma sequência de ações, uma comunhão de aquecimento coletivo uníssono, se preparando pra exercer sua docência. Os deslocamentos de corpos parafraseando Corazza, são artistados de maneira muito semelhante, com saberes que vêm de vários lugares.



Texto da Coletânea Prêmio Off Flip de Literatura 2022: crônica.