Elaine Miragaia

Psicóloga, arteterapeuta e leitora compulsiva. Trabalha há  21 anos exclusivamente com mulheres. Adepta das intensidades, das hipérboles e do uso de palavrões como advérbios de intensidade. Escreve crônicas, relatos e, vez ou outra, resenhas bastante pessoais sobre os livros a atropelam. Compartilha seus textos no Instagram.

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Elas Reveladas 

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Publicado em 2 de setembro de 2023.

O Susto


Ela sumiu. Samira não a encontra em nenhum lugar, não faz ideia de onde ela esteja.

O lugar é enorme! Por que tantas árvores? Por que tantos arbustos? Tem algum buraco? Algum poço ou valeta? Tem uma piscina! Será que…?

Samira corre até lá, o coração parado por um instante, a respiração quase em suspenso. Imagina o corpinho da filha, os cabelos loiros a flutuar. Nunca correu tão rápido! Estaca abrupta à beira d'água. Ela não está na piscina. Por um momento, o alívio; na sequência, o desespero:

- Cadê essa menina?- murmura em pânico.

Grita seu nome, à plenos pulmões. A mãe de Samira aproxima-se desorientada:

- Ela tem dois anos, pernas curtas, não é rápida, nunca saiu de dentro da varanda.

As duas entram em casa, vasculham quartos, olham embaixo de camas, dentro de armários e nada! Ela se desintegrou. O choro sobe até a garganta de Samira aos borbotões. 

Um carro para no portão. É o irmão de Samira. O carro lá fora a faz pensar na rua:

- Será que ela saiu de casa? E os cachorros? A valeta de escoamento da chuva! Será que…

Corre para o portão. A menina está no colo do tio, agarrada em seu pescoço, tagarelando em sua legging azul, sua camiseta pink e pantufas de botinha amarelas. Descabelada e corada, a criança interrompe a gargalhada quando escuta a mãe gritar seu nome em meio ao choro convulsivo.

Samira arranca a filha dos braços do irmão, verificando se a menina está inteira:

- Como você leva ela sem me avisar? Nunca mais faça isso!

Atônito, o rapaz tenta se defender:

-Eu avisei o papai, disse que iria dar uma volta de carro!

Atrás dele, a cunhada tem os olhos arregalados.

- Hakim, era comigo que você tinha que falar!

A pequena vai para os braços da avó. Não entende o que está acontecendo. De repente, seu rosto se ilumina e ela sorri animada:

- Vovô!

O pai de Hakim e Samira se aproxima calmo, com os olhos líquidos e um sorriso nos lábios. Retira os protetores auriculares enquanto lê o entorno.

Samira então percebe: seu pai não ouviu nada do que aconteceu, isolado do mundo cortando a grama. Hakim, com os olhos marejados, busca os olhos da irmã:

- Desculpa.

- Tá. Da próxima vez fale comigo, nada de recados.

Publicado em 29 de julho de 2023.

Exaustão


Cinco horas ela acorda. Sai da cama, faz xixi ainda sem nem abrir os olhos. Tenta conter os pensamentos, mas eles são mais rápidos do que qualquer censura. Coloca a água e o leite pra ferver, lava a louça na pia, passa café, coloca mesa, chama o menino cinco e meia, arruma a cama, abre os quartos, pendura as toalhas no varal, separa a roupa suja, coloca na máquina e liga. Às terças tem lixeiro. Tira o lixo, recolhe os cocos do cachorro no quintal, troca a areia do gato, lavar a bandeja do gato, coloca o lixo na rua, verifica água e ração dos bichos. A faxineira não vem. Não tem feijão cozido pro almoço e a feira acabou. Ninguém aguenta mais macarrão. Escolhe feijão, coloca de molho, pega uma vassoura, varre "onde passa o padre", limpa os banheiros, na hora do banho lava o box. O menino chama, não acha um caderno. Para tudo e procura o caderno. Acha o caderno. Manda pra escola. O caçula acordou. 

Prepara o café com leite na xícara, ajuda com pão murcho, pergunta se tem tarefa, descobre que tem prova. Bebe água e respira. Pede calma a si mesma. Tudo isso e nem deu oito horas. Busca um pano e tira o pó dos móveis. 

A criança tira a mesa, ela guarda tudo no lugar, ajeita as louças na pia, a máquina parou. Tira a roupa da máquina, estende no varal, coloca a máquina pra encher, separa a segunda leva, coloca na máquina, lembra que tem comida velha na geladeira e precisa jogar fora. Fecha a máquina, caça os potes esquecidos e descarta tudo aquilo que tem uma cara duvidosa. Conta os ovos e descobre que dá pra fazer um omelete. Lava a louça na pia. O menino surge com os cadernos e livros da tarefa, pede ajuda com matemática, ela comenta que é péssima com números, mas para tudo e vai tentar ajudar. Quase quarenta minutos depois, lembra que precisa cozinhar feijão. 

Corre na cozinha, escorre a água do molho, lava, coloca na panela de pressão, acende o fogo e volta pra sala. Agora estudar para a prova de geografia. Lê o texto e ignora as mensagens que chegam no celular. Tenta explicar o que entendeu enquanto o menino olha pra ela com cara de ué. Vai abaixar o fogo da panela de pressão que já está apitando. Pega o celular. 50 mensagens inúteis das mães da escola no grupo da sala do mais velho, o marido dando bom dia e pedindo pra resgatar na gaveta de contas aquelas que precisam ser pagas e ele esqueceu de pegar. Ódio! Duas clientes, uma pedindo mudança de horário essa semana e a outra tentando burlar os combinados mais uma vez. Respira fundo. A vontade é mandar todos à merda. 

A máquina parou de novo, corre mais uma vez pendurar roupa no varal. Decide que por hoje chega, amanhã lava mais. Lembra que precisa lavar os panos da cama do cachorro que estão fedidos. Põe a máquina pra encher mais uma vez, vai buscar os panos. No caminho, enxerga teia de aranha numa das quinas das portas. Para e arranca a teia. Pega os panos e coloca na máquina. Olha o relógio: dez e meia, onze horas fazer almoço, meio dia e meia o mais velho chega e o caçula vai. Senta no sofá. 

O celular vibra. O marido cobrando as contas que nem ele sabe onde colocou. Levanta, abre a gaveta de contas, revira tudo até que acha. Fotografa os códigos de barra e manda tudo pro bonito. Volta pro sofá. Quando finalmente começa a relaxar, o celular apita avisando onze horas. Vai fazer o almoço. Pica cebola, descasca alho, tira a pressão da panela rezando pra ela não explodir, tempera arroz, tempera feijão, acha uma abobrinha na geladeira, lava, pica, refoga. Pergunta se o filho prefere ovo frito, mexido ou omelete, faz o omelete. Arruma o prato da criança, chama a criança. Enquanto ela almoça, lava as louças da pia. A máquina para pela terceira vez e ela vai pendurar os panos do cachorro. 

Ajuda o filho a arrumar o material do dia na mochila, pergunta se pegou a garrafa de água, lembra de escovar os dentes e pentear o cabelo. A van escolar chega, abre a porta pro caçula sair e recebe o mais velho. Ele pergunta sobre o ovo, ela frita o ovo. A essa altura, ela mesma já perdeu a fome e a vontade de viver. Desocupa as panelas, lava as louças, limpa o fogão. Pensa em descansar, mas lembra que a primeira leva de roupas no varal deve estar seca. Vai recolher a roupa e joga em cima da cama. Dobra tudo, coloca cada pilha em seu respectivo cômodo, lembra que não respondeu as clientes, busca a agenda e o celular. Ajeita o horário de uma e respira fundo pra não ser grossa com a outra. Retoma os acordos, explica porque não pode fazer o que a cliente pede, pensa mais uma vez "por que tenho que retomar sempre esses acordos com mulheres adultas?". Olha o relógio, ela só quer um minuto de paz. 

Uma e meia da tarde: "Meu Deus do céu! Em meia hora eu começo a atender!" Ajeita o escritório, separa os cadernos de anotações das clientes do dia, acha o carregador do celular e os fones de ouvido. Pega água, ajusta a luz, dá uma olhada no espelho. Passa instruções sobre as roupas do varal pro mais velho, respira fundo e fecha a porta do escritório. Segundo round. E o dia ainda nem está pela metade.

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