Conheça trechos do livro Crônicas da sala de aula: crise ou projeto? Org. Rosana Siqueira

Publicado em 13 de outubro de 2023.

Obra composta por 29 crônicas que retratam o cotidiano escolar.

Organização: Rosana Siqueira.

Prefácio e comentários da obra: Marisa Fernandes Zanoni.

Autoras: Amanda Gurgel, Camila Alexandrini, Carlas Moraes, Célia Nunes Cunha Alves, Cristina Gallas, Dayane Regina Masselai, Graciane Oliveira, Helena Cury, Joice Malta, Karola Lobo, Kelly Gularte, Lice Pinho Gonçalves, Lívia Nogueira, Mariane Diaz, Maricélia Ribeiro Jorge, Melissa Coelho Xakriabá, Môni Longo, Raquel Compulsione, Robson Martins, Rosana Siqueira, Rosane Brandão, Sandra Rezende, Simone Almeida, Solange Ribeiro Dall Agnol, Stella Dias, Telma Gomes.

Ano 2023. Tamanho 21cmX14cm, 204 páginas.

Amanda Gurgel

A professora que não sabia brincar

"Espremida entre a sala lotada e o toque que anunciaria o limite para o fechamento do trimestre, a professora constatava o fim de linha ao qual tinha chegado: ou avaliava os cadernos, ou assinaria a advertência por atrasar a entrega das notas daquela turma. Foi quando ouviu a pergunta inusitada: “Posso fazer uma pesquisa contigo?”. Ela não hesitaria se fosse outra pessoa. Mas era justamente a garotinha que nunca havia lhe dirigido uma palavra sequer. Na fração de segundos em que tinha que decidir entre ouvir a aluna e cumprir a burocracia, respondeu sorridente: “Pode, sim!”."

Camila Alexandrini

Quatro pedacinhos do meu coração

"“Sora, tu tá bem?” Eu não estava. Sentia meu coração tão apertado que me comoveu aquela demonstração de atenção e afeto. Consegui falar sobre o que se passava e preparamos uma intervenção na escola para o dia internacional das emoções. Dali em diante, essa turma, tão sisuda nas minhas aulas, começou a demonstrar menos indiferença às minhas propostas pedagógicas."

Carla Morais

Os olhos de Levy

"Em dado momento, apanho o telefone e começo a registrar um pequeno vídeo, noto que Levy, um dos mais agitados, deitou e começou a olhar boquiaberto para o céu. Não encontrarei palavras para descrever exatamente como foi a sensação de presenciar seu encantamento e apesar de falar, certamente se eu o interpelasse iria estragar o momento e provavelmente ele não teria no auge dos seus três anos vocabulário fiel à sua sensação."

Célia Nunes Cunha Alves

Maternagem

"Na creche, a menininha amava que eu fizesse penteado nela e como agrado, todos os dias, me trazia flores! Até que um dia, sugeri à mãe dela que não a trouxesse na sexta-feira, devido ao fato de terem muitas crianças com catapora. Passado o fim de semana, na segunda-feira, chego para trabalhar e percebo as pessoas preocupadas comigo, me pedindo para sentar, e a notícia vem: a princesinha da Professora Célia contraiu catapora e morreu! Minha cabeça rodopiou, chorei, gritei e fui ao lugar onde estava o corpo, bem maior do que a menina era, de tão inchado que ficou!"

Cristina Gallas

O superpoder da diferença

"Existe aluna de inclusão ou existem pessoas com direito ao ensino e vontade de aprender, cada uma na sua condição? Penso que essa perspectiva foi construída na prática diária da relação que estabelecemos, de aprendizado mútuo e de respeito à capacidade que cada uma tinha naquele momento. Por isso, afirmo que inclusão é uma palavra feia, que nos faz tremer se não soubermos qual é o nosso próprio superpoder."

Dayane Regina Masselai

O desafio cômico de ser professora

"Com vontade de realizar suas atividades da melhor maneira possível, essa professora sabe que o material disponível para o desempenho de suas funções é mínimo. Ela se vê obrigada a adquirir com seus próprios recursos materiais pedagógicos, para favorecer a aprendizagem dos estudantes de sua classe, enquanto as autoridades, aparentemente, preferem investir em outros luxos."

Graciane Oliveira

A realidade das professoras e professores da "sombra de Dubai", Balneário Camboriú

"Terapia, psicoterapia, ausência de autoconfiança, doenças psicossomáticas, professoras e professores hoje são também especialistas em “tarja preta”. Fuga do mundo real, maratonar séries para não enlouquecer com a vida doida que escolhemos."

Violência Escolar

"A pessoa que sofre assédio, perseguição, humilhação por parte de seus superiores, desenvolve inconscientemente emoções como tristeza, medo, raiva e sentimentos de inferioridade, insegurança, desmotivação, o ser humano se sente um nada, um lixo, e estes sentimentos e emoções os levam a duvidarem de sua própria capacidade, por melhor e mais preparado que seja para desempenhar suas funções. O que faltou aprender na carreira acadêmica, foi como lidar com os traumas que este tipo de ação criminosa é capaz de causar."

Helena Cury

Flor no asfalto

“Professora, você tem preconceito?” “Eu? Puxa vida, lindo, eu tento muito não ter, mas às vezes a gente escorrega, né?” “Mas então, você não tem preconceito?” “Não. Eu me esforço pra não ter. Por quê?” “Vou te contar um segredo”. “Pode contar o que quiser, se quiser”. Ele me olhou com os olhinhos brilhando entre as sardas, escondeu a boca com a concha da mão e sussurrou no meu ouvido: “é que eu sou gay.”

Apologia da Escola

"Engraçado que hoje mais cedo eu tinha ficado com o corpo desorganizado e sem ar quando soube que o menino foi embora. A gente pega um amor danado às vezes. O menino artista enrustido. Será que alguém vai contar pra ele, que ele é artista? Eu mesma nunca contei, nem sei o porquê. Ele pediu um dia se podia ficar atirando bolinhas de papel com um tubo de caneta quietinho ali no mundinho dele, eu deixei, só porque ele já tinha acabado todos os afazeres."

Joice Malta

Nos arredores da escola

Preciso ressaltar que apesar das muitas frustrações diante do cenário da Educação no nosso país, e não me refiro aqui exclusivamente a rede pública de ensino, reconheço em muitas educadoras o ato de coragem e comprometimento. Entretanto, preciso dizer que não se pode afirmar a minha ausência no chão da escola, quando todos os dias, um pedacinho de mim adentra pelo portão para que, sobre o auxílio de outros, construa a sua índole ao mesmo tempo em que aprimora suas habilidades curriculares.

Karola Lobo

Celas

Ela sentiu uma gota escapar. Quente. Os pelos do pescoço arrepiaram com a vontade cortante.

Você pode segurar o xixi, por favor? Faltam só vinte minutos e, se você sair e outra pessoa ficar no seu lugar, a sala perde o controle.

A voz metálica no interfone passava o comando do dia: Beba menos água da próxima vez, por gentileza. O tratamento passivo-agressivo era o modus operandi da Instituição.

Kelly Gularte

Quantas de nós

O censo de 2017 mencionava que quase 80% do professorado brasileiro é do gênero feminino.

Destas, me questiono: quantas têm glaucoma, catarata? pressão alta, diabetes, intolerância à lactose, ao glúten, síndrome do túnel do carpo, burnout, tendinite, bursite, enxaqueca, estresse? quantas fazem ioga, são fitness, budistas, católicas, evangélicas, umbandistas, corredoras, cinéfilas? quantas preparam um pratão de pipoca e ficam assistindo uma série, quando têm algumas horas de folga?

Z da Questão

"A parte incrível desta realística constatação é que podemos sim, ser resistência; somos muitas, espalhadas pelo Brasil e a possibilidade de auxiliarmos na formação crítica de seres pensantes e não mera mão de obra para o mercado de trabalho e o que fascina esta profissão."

Lice Pinho Gonçalves

Sobrecarregada

Marta passava parte do seu dia em uma sala de aula, nutrindo dezenas de crianças de valores e conhecimento e a outra parte do dia, preparando atividades, trabalhos e avaliações para aplicar nos dias seguintes. As mães naquela festa, não imaginavam que a dedicada professora já não tinha tempo para muita coisa, pois entre planejar, estudar e corrigir, ela ainda precisava comer e dormir. Sim, o trabalho de uma professora vai além das horas na escola.

Lívia Nogueira da Silva

Além do Imaginável

Perceba-as! Quantas regas anseiam suas raízes? Quantas podas necessitam seus galhos? Quantas contemplações desejam suas flores? Quantas colheitas serão comemoradas?

Quão lindos e inimagináveis são os momentos que podemos proporcionar, mediar e também vivenciar junto a elas e eles, não apenas na sala de aula, mas na amplitude de todo espaço escolar.

Mariane Diaz

Por aqui, tudo normal

Som de helicóptero sobrevoando nossa escola.

Um responsável chega para buscar uma criança. Depois outro, e mais outro. “Professora, já avisaram que ninguém vai entrar depois, por isso estou vindo buscar agora.” “Professora, já estão entrando nas casas lá nos conjuntos”.

“Sigam com cuidado, prestem atenção e até amanhã”.

“Até amanhã?!” Penso eu.

Maricélia Ribeiro Jorge

Viver para ser perfume!

Quem roubou o sorriso das professoras e professores?

Quem apagou aquele brilho de seu olhar quando o assunto é educação e aprendizagem? Observo atentamente ao meu redor a falta de felicidade no rosto das professoras e professores, corpos exaustos, ausência de saúde física e emocional.

Melissa Coelho Xakriabá

Vivências e pensamentos de uma educadora em construção

Imaginar que uma professora em sala de aula possa dar conta de estudantes neurodivergentes, com vários níveis de suporte (inclusive estes foram os que mais ficaram defasados na pandemia, por não conseguirem suporte no estudo, no trabalho e com a interrupção das terapias presenciais), de abordar e entender gênero e diversidade sexual em classe, de problematizar o uso das redes sociais com a propagação de fake news e conteúdos extremamente violentos, de incluir os indígenas e suas especificidades étnicas e ainda lidar com famílias desestruturadas e adoecidas, sem nenhum tipo de capacitação, de acolhida, e sem o mínimo de cuidado para manter sua saúde mental, é realmente da ordem do surreal.

Môni Longo

Meu primeiro (e único) ano como professora

Minha rotina diária era basicamente: acordar às 5h da manhã, pegar o ônibus, lecionar o dia inteiro e fazer Pedagogia à noite, todos os dias! O problema é que a universidade ficava em outra cidade, a 1h30min de distância. Ou seja, eu chegava em casa à meia-noite, tomava banho e preparava o material para o outro dia, indo dormir por volta das 2h da madrugada. Só que às 5h eu já precisava acordar para trabalhar novamente. Eram apenas 3 horas diárias de sono!

Raquel Compulsione

Odeio livro, odeio escola

“Levei alguns exemplares do Sérgio Vaz, distribuí e deixei que os alunos os folheassem. C, aquele que odiava escola e livro, nem pegou no exemplar. Pedi que escolhessem um texto que gostassem e ele permaneceu imóvel, nem abriu o livro. [...]

C levantou a cabeça:

— Repete aí, menó!

Ao ouvir novamente, esboçou um leve sorriso e permaneceu calado ao longo da aula. 

No final, chegou perto de mim e disse: 

— Tia, eu não sei ler. Queria aprender.

Não era ódio, era analfabetismo.

Robson Martins

CIEP' paris 

Estamos quase chegando na estação de Orly. As lembranças ocupam todo o espaço disponível acompanhada de suspiros. Tenho uma especial, em que substituo o suspiro por reflexão. Meu aluno, funkeiro e ritmista que, no CIEP, constantemente era solicitado a não reproduzir o ritmo do Funk com as mãos espalmadas, pois o som era muito forte e incomodava, lá, no saguão, do Lycèe International de L´est Parisien, estava cercado de franceses da sua idade aprendendo a batida do Funk com as mãos espalmadas.

Rosana Siqueira

Cansei de ser rebelde

Estou numa fase que concordo e executo, minha briga não é contra a gestão de onde atuo, mas contra um sistema que me espreme e amordaça. A crise na Educação brasileira, que tem como referência a frase de Darcy Ribeiro que titula este livro, é um breviário do governo que nos reprime, um projeto de desconstrução, com início, meio e fim, com cortes em verbas, falta de estrutura, material, manutenção, limpeza, falta de pessoal e principalmente, dignidade.

Rosane Brandão Dornelles

Ah, pronto! Lá vem...

Hoje, um aluno foi chegando sorrateiro na minha mesa assim que entrei na sala. Antes dele falar, já avisei:

– Se for banheiro, desiste, já tem gente lá fora e uma fila gigante na minha cabeça. – Devo ter cara de penico, pensei comigo.

– Calma, professora! Só vim dizer que você está diferente... fez alguma coisa com o cabelo?

– Lavei.

– Hahahahahahahahahahahaha... – rimos os dois.

Daí ele ficou me olhando sério.

– Não estou brincando, eu lavei.

E ele agora mais sério, com alguma dúvida correndo pelos olhos.

Sandra Terezinha Souza Rezende

Criar e compartilhar memórias na Educação Infantil

Fizemos um projeto sobre a construção da identidade (sendo que a identidade desde que nascemos, já se constrói). Foi inspirado em uma pesquisa da revista da Nova Escola, criamos o miniprojeto “Baú das Memórias” e produzimos um mural com roupas antigas, fotos e objetos de quando eram bebês, em uma turma com crianças de 3 e 4 anos. Foi muito significativo.

Simone Almeida

Minha história com a inclusão

Estavam todas e todos lá e alguns novos, uns que reprovaram, uns vindos de outras escolas. E uma colega que nunca imaginaríamos ter. Uma colega com Síndrome de Down!

“Como é o seu nome? O que você gosta? Senta do meu lado? Quer que eu copie para você? Posso ir à sua casa?” Esses foram nossos primeiros contatos, e eu me achando melhor, porque ela tem o nome igual ao meu. Sim, o ano era 1986, antes de imaginarmos falar em inclusão, antes de termos uma Constituição Federal que dissesse que a Educação é para todos.

Solange Ribeiro Dall Agnol

Troca de papéis

Então, com sete anos, eu decidi ser heroína e hoje meus olhos continuam brilhando, mas agora porque olho nos olhos dos pequenos e os vejo tão sensíveis, tão frágeis, muitos buscando segurança e afeto. Portanto, coloco minha capa, hoje não é branca, devo ter umas três cores diferentes, pego minhas “varinhas", são diversas, canto, encanto. Não resisto, beijo e abraço mesmo, o detalhe é que não uso batom.

Stella Dias

Conceito A

Fui para casa com um peso na consciência, confesso. Fiquei com a voz do meu camarada da rede, ele também de História, a discordar dessa reprovação, uma vez que aprovamos outros nada presenciais, ao passo que o estudante em questão ao menos teve presenças. Discuti um pouco com o meu grande amigo e fui firme na minha decisão, ainda que meio arrependida do que tinha feito.

Telma Gomes

Empatia docente

Essa coordenadora me passou informações sobre as turmas, e também alunas e alunos específicos. Ela chamou atenção para os ditos alunos problemáticos, apontando Severino como o desordeiro da escola. Disse-me que o aluno de 13 anos, cursando o 6º ano do Ensino Fundamental, era um repetente e provocava transtornos a professoras e alunos.

Ao entrar na sala do 6º ano, fui recepcionada por um aluno atencioso que se denominou de Adriano. Ele me apresentou a sala, a turma, e não saía do meu lado. Perguntei se queria dizer algo. Ele disse: Que me chame de Adriano! Indaguei: Por que não o chamaria pelo nome? Ele sorriu e sentou.