Crônica da enchente 

Kelly Gularte

Publicado em 13 de maio de 2024.

Inicio esta coluna, no importante  13 de maio,  evidenciando em cada texto, o meu lugar de fala: uma refugiada climática.

Acervo pessoal

Meu amigo Elton de Manaus, de um intercâmbio que fizemos juntos, me perguntou:

Elton: “Oi, Presidenta. Como vocês estão por aí Kelly. Aqui é o Elton, de Manaus”. Esse foi o gatilho, neste dia de frio, nublado e chuvoso, pra dizer como me sinto:

Kelly: O que a TV e internet mostram é uma síntese da realidade nas cidades afetadas: pessoal se mobilizando e dividindo, comprando roupas, comida, material de higiene, grupos de WhatsApp mobilizando resgates, o nome disso é solidariedade. A parte de jacaré em avenidas, facções, assaltos, tudo verdade. Vejo a solidariedade de artistas, influencers, clubes, igrejas, admiro e agradeço a todos. Mas, ao mesmo tempo, me parece que depois disso tudo: todos terão mais likes, seguidores e sócios. Eu mesma, estou seguindo 3 que nunca imaginei.

O governo federal tá dando o auxílio, a sociedade civil tá fazendo sua própria mobilização, mas a Constituição Federal precisa ser honrada.

Espero que tu não me julgue mal, mas fugi. Eu, meu marido, filha e 2 gatos.

Moro na capital do RS e na segunda à tarde culminou: falta de luz, água, ruas alagando e o prefeito foi no bairro e disse: “evacuem o bairro”. Foi um horror. Caos. Tipo guerra. Pessoal descontrolado. Ônibus, buzinas. Em 1 hora organizamos comida, 1 mochila com roupas e fomos pra única estrada possível de saída da cidade, a RS 040… galera desesperada por água (quem tem galão leva e quem não tem, o problema é teu).

Agradeço muito que temos a casa da praia dos meus sogros, que eles não usam. E aqui, está tudo tranquilo. Pouco movimento. O básico não falta. Fomos 2 dias seguidos pra beira da praia tomar chimarrão; tomei banho de mar; me senti hipócrita. Sou refugiada climática também. Saí de casa, espero que ninguém entre lá.

Voltaremos quando a água baixar (moro no segundo andar – "acho" que a água não chegará lá), e quando o básico que é luz e água tiverem no prédio.

A empresa onde meu marido trabalha tá com mais de 2m de água de altura, onde minha filha estuda – virou abrigo.

Dou aula em 2 lugares: um é no centro de Porto Alegre, tá com mais de 5m de altura de água do Guaíba, e a outra escola na volta do Jacuí (não tenho estrada pra ir porque alagou/caiu) está abrigando 150 pessoas. Me vejo voltando ao trabalho, depois de 1 mês, no mínimo.

Só que tudo que te disse sobre mim, é nada… fichinha… tipo "tô bem na fita".

Tenho mais da metade de colegas de trabalho, alunos, alunas, parentes que perderam tudo dentro de casa, e alguns em que a casa foi levada pela água. Nem imagino o que é esse sentimento.

Quem mora em morros não foi afetado (seja classe baixa/média/alta) diretamente. É geral a galera sem água na capital.

Acervo pessoal

Resumindo é isso. Virou textão, e as causas disso são que em Porto Alegre, nunca testaram as comportas. Há um problema sério de manutenção no Rio Grande do Sul! O prefeito está há 3 anos derrubando árvores! O governador queria derrubar o muro da Mauá e vender toda orla do Guaíba pro privado (uma parte já foi). Com o muro foi um horror, sem ele, seria pior do que está.

O atual governador privatizou água e luz (e o serviço está péssimo desde então). Com as enchentes dos últimos tempos, se fez nada de prevenção. Nada. Nem na serra, vale, nem na capital… nada (que pareça profundamente eficaz). Há normativas em todas as esferas pra flexibilizar essa palhaçada (liberar fertilizantes, terras pra plantar qualquer monocultura) e o “clima” não suporta mais negligência. A Greta tá gritando isso há anos.

O governador disse, com o colete fofo da defesa civil, que há três etapas/verbos nesta catástrofe: salvar vidas, abrigar e reconstruir. Acrescento + 1: prevenir. E outra, o RS (bem português) se construiu em torno dos rios...

Fico contente de saber que aí pra cima, me parece tudo normal, sei que vocês têm as secas. Sigamos. A imagem do resgate, do cavalo ilhado, parado, resiliente, mostra muito do que é o povo daqui, mas a real é que mais de 50% da população não tem ensino médio completo (quem que para pra ler o Censo, né), e isso afeta diretamente os políticos escolhidos como representantes do Estado.

Obrigada por me ler, amigo.

Elton: Okay, Kelly minha amiga, te desejo o melhor possível pra vocês. A gente reza muito por vocês. O problema que a gente teve aqui, foi a seca ano passado, de algumas cidades no interior, mas foi superado, é menos grave que essa situação de vocês. Abração e proteção de Deus pra todos.


Edição: Rosana Siqueira