Plantação de Batatas

Melissa Coelho Xakriabá

15 de setembro de 2023

Especial Setembro Amarelo

Ela andava pensativa. Algo assim, reflexiva mesmo, distraída e desconectada. Nos seus olhos, todas as imagens se misturavam como em um tecido de cores sem contornos, e o ruído incessante da brincadeira nas ruas entrava diluído e longínquo em seus ouvidos.

Há tempos ela ouvia os outros falarem muito. Há tempos ouvia coisas sobre si mesma com as quais ficava muito em dúvida. As pessoas articulavam tão bem as palavras, que ela se sentia extremamente disfuncional e vulnerável para palpitar. Ainda que o assunto fosse ela mesma, sua própria pessoa, seu repertório identitário. E ela pensava assim, com o rosto tensionado que não era percebido ou, se era, passava totalmente ignorado. Ela pensava e os pensamentos não tinham leveza. Ela carregava pedras e rebocos de obras que não eram suas. As suas, não conseguia terminar tamanho era o estranhamento diante do mundo e tamanha exaustão que minava suas forças. Certa feita, disseram a ela, imitando seus trejeitos e sua forma de falar...

Disseram a ela, com todas as letras, que ela servia apenas para papéis secundários, ainda que se encenasse o enredo de sua própria vida. E quem disse?Alguém que acabara de ouvir dela detalhes dolorosos dessa mesma vida. Ela sentiu como se uma flecha envenenada tivesse se cravado em seu peito, perfurando-a com movimentos ágeis e rotatórios. Ao redor não havia nada que estancasse as placas de sangue que escorriam. Placas onde se lia: "Entre sem bater." Por algum motivo (talvez fosse a linguagem obsoleta inacessível) todos, com raríssimas exceções, batiam freneticamente. Ela às vezes abria a porta de pijamas, a fim de parecer confortável. Então vinham festejos solenes, os quais os pijamas eram impedidos de frequentar. Às vezes ela vestia sua melhor roupa (ou ao menos achava que fosse) e se enfeitava toda, e então vinham as grandes manadas vorazes, que a pisoteavam e rasgavam suas vestes.

Ela estava com uma grande vontade de morrer. Não imaginava como, nem porque, nem de onde vinha aquele pensamento. Lá, devagarinho, infiltrado discretamente, o pensamento suicida se configurava. Ela começou a desmontar. Pedaço a pedaço. Gota a gota. As células que teoricamente seriam de defesa foram as primeiras a cair. Depois tudo foi invadido. E tudo doía uma dor que não tinha medida. Ela ainda tinha dúvidas.  Se estava morrendo uma morte legitimamente sua, ou se era um apanhado de desejos capengas, abandonados no vazio, que encontraram eco em seu próprio vazio. Estaria morrendo com todas as suas personalidades mortinhas, assim sem chance alguma de resistir? Plantariam batatas naquele terreno onde se esvaia? Assim, toda vez que dissessem a alguém: "Ora, vai plantar batatas!", ela ainda estaria ali disponível de

alguma forma, para as sementes do seu futuro interrompido por reticências?

Era setembro e ela estava de amarelo. E demoraram mais de seis semanas para encontrarem o corpo. Às moscas.

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