Passo o ponto

Melissa Coelho Xakriabá

6 de setembro de 2023

Ela ainda estava funcionando. Que pensamento estranho! Funcionando, aos trancos, como uma máquina velha. Fez daqueles sopões prontos que vendem no supermercado. Sopa de ervilhas. Olhava o fogo baixo aceso e tentava isolar as cores, uma a uma. Na escola ela pintava fogo de amarelo, laranja, vermelho e azul, nos grandes blocos A3 que a professora distribuía solenemente, como se participasse de uma grande cerimônia. Nos dias de festa junina ela adorava desenhar fogueiras enormes nas cartolinas. Fogueiras tão grandes que não havia espaço na folha para desenhar pessoas dançando nem comendo milho, nem bandeirinhas, nem nada de nada. Só fogueira. Uma única vez ela fez uma bandeirinha. Cinza. Devia ser do carvão da fogueira. Riu internamente porque talvez essa fosse uma boa piada. Nunca levara muito jeito com piadas. Simplesmente não ria e invariavelmente alguém achava que ela não tinha entendido. E mal sabiam todos que alegria seria a sua vida se ela realmente não entendesse.

Já havia combinado consigo mesma de não comprar mais esses alimentos industrializados, ricos em sódio e conservantes. Mas, novamente, como sempre, não cumpriu o que combinou. Nunca o fazia. E não pontuava depois qualquer questão ou mesmo advertência, pois ela mesma era muito frouxa. Tão frouxa quanto a alça do primeiro sutiã, arrebentado pelo primeiro namoradinho bem no muro em frente à escola, expondo-a a uma situação constrangedora. Não a primeira, logicamente. Sabia se constranger desde criança. Sabia disfarçar desde criança. Meninas aprendem isso cedo.

Seu filho, um moleque de olhos arregalados e cabelos revoltos, não tinha o menor filtro. Dizia naquela falinha mansa, chiada e cheia de fonemas trocados, o que lhe viesse à cabeça. Pelo menos assim parecia. Sim, talvez. Porque ele tinha pouco tempo de vida para ter muito na cabeça. Ou talvez isso pouco ou nada tivesse a ver com tempo (ao menos não o tempo de Chronos). Pois o resultado do constrangimento com o primeiro namorado e o primeiro sutiã, foi sua patética primeira tentativa. Ela bebeu um produto de limpeza que continha soda cáustica. O profissional de saúde que preparou sua lavagem gástrica falou para seus pais na sua presença: "Patética (e foi nesse momento que ela aprendeu a famosa palavra que a acompanharia estrada à fora, tipo Chapeuzinho Vermelho, só que sem nada doce). Mas ela vai tentar de novo.  Melhor deixarem qualquer material assim, mais perigoso, fora do alcance". Virou-se para ela, deitada numa cama gélida de um quarto gélido e disse:" Não é, princesa?" Dito isto, saiu de cena num impecável jaleco. E ela pensando o que poderia ser mais perigoso. "O mais perigoso eu já fiz, otários, eu nasci!" Ah, como ela queria... Como ela queria não saber! Como ela queria não entender!

Botou a sopa em um pratinho e ficou soprando a fumaça que dele saía. Chamou o filho que demorou quase uma eternidade para responder. Na quarta vez, ela gritou: "Vem logo, peste!" O garoto veio. Ele chegou, afagando o cotovelo.

_Bateu tutuveio. Bateu tutuveio.

_Bateu tá batido. _respondeu a mulher. _Senta pra comer.

O garoto sentou numa caprichada careta.

_ Ah, xopa não! Xopa não.

_ Ou isso ou fica com fome. Escolhe.

_ Paxo nada! Paxo nada! Vijinho tem bicoitu. Ele dá bicoitu.

E saiu o moleque na ventania arregaçando a porta.

Ela pensou em sacar tudo que lhe restava no banco e mudar de Estado. Mudar de estado de espirito, só se fosse, não tinha nem uma onça no banco. Talvez nem um miquinho-leão dourado. Hahahaha, piada sensacional! Bom, talvez ainda conseguisse trabalhar com prostituição em algum lugar. O filho teria biscoitos e ela teria outra vida.

O filho, afinal... Ele... Ele que já começara a vida nascendo antes do tempo previsto, rejeitando o peito e não mamando por nada neste mundo, dormindo de manhã e na madrugada tocando o terror aos berros no bercinho.

Ela sentou. Varejou o prato de sopa na parede. E chorou. Chorou exatamente como o bebê que seu menino fora. Chorou aos berros, derrubando paredes, arrombando portas, quebrando janelas. Assim ficou por mais de uma hora. Depois lavou o rosto, deu um sorriso sem graça para o espelho e foi até a casa do vizinho dos biscoitos. Ansiando por um abraço quente e sincero. Abraço do moleque mais incrível que já conhecera.

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