Foda-se!

Melissa Coelho Xakriabá

7 de junho de 2024

Ela estava tendo mais uma daquelas conversas consigo mesma em caixa alta, sem pontuação, sem coerência, sem lógica, sem pausa para o café, nem para o rapé. Enquanto mastigava um lápis colorido sem ponta, com o grafite todo quebrado por dentro e chupava a própria língua no afã de calar a própria boca. Porém, bocas com vida própria não se calam, tampouco cérebros com várias janelas abertas ao mesmo tempo conseguem descanso, nem dormindo, nem fodendo, nem fumando, nem bebendo, nem comendo, nem, nem, nem. 

Ela puxou seu rabo de cavalo dizendo: “corre égua”, mas a potranca braba sem cabresto paralisou no mesmo ponto-estação-encruzilhada-pensamento-sonho. Ela buscou aquele pontapé que faltava para o precipício, mas no fim do precipício não estava Caronte conduzindo os mortos, estava um palhaço borrado com uma cara tão sem graça que chegava a ser cômico e mais cômico seria se não fosse trágico como se uma linguagem impedisse a outra. Mas não impediu e isso é claro, como um dia foi a água. 

Nos dias atuais a água tem cheiro, cor, sabor e custa mais caro do que um copo de plástico daquela cachaça porreta que seus antigos amigos que nunca foram amigos bebiam logo pela manhã e depois se jogavam no mar em busca de peixes mágicos que pudessem realizar três desejos. Porém, essa história do peixe havia se perdido na memória da baleia que engoliu Pinóquio e ela em nada se parecia com Pinóquio, pois mentia, mentia, mentia tanto que até ela própria acreditava em si mesma, mas não acreditava em si mesma quando precisava dizer para alguém que acreditassem nela. 

Então um dia na chuva, no sol, no meio do arco-íris, havia um pote de ouro tão pesado que nem cem pessoas aguentariam carregar e no entanto, ela só queria moedas de chocolate que fizessem com que esquecesse a coceira naquela vulva imensa e compulsiva que babava e ditava ordens que ela detestava cumprir, porque depois vinha a cobrança do resto do corpo que chorava por todos os poros, se contorcendo em mágoas-raivas-temores-remorsos e tudo o mais. 

Mesmo ela já tendo tentado pagar com a vida, a Morte estava à espreita e rejeitou a oferta, a chutando com toda a força de volta para aquele protótipo mal feito de lar, chamado de mundo. Ela não suportava o peso da cabeça, via vozes e ouvia vultos e nem sequer era autora dessa incrível definição da Loucura, que um dia ouvira e roubara com uma cara de pau tão entalhada que nos remetia há séculos passados. 

Ela vestia e despia peles diversas e se camuflava como se fosse para a guerra e se não era guerra, afinal como chamar tudo aquilo ninguém arriscava dizer sem a presença de um advogado competente. Ela só conhecia incompetentes em todas as profissões e ficava sempre a se questionar, que diabos queria dizer ter formação documentada para exercer essa ou aquela função e ela mesma não era ninguém, porque haviam dito que sem títulos ela não seria considerada uma cidadã de respeito. Ela não queria nem ser cidadã, queria apenas ser e ter direito a não se submeter a tantos papéis que diziam coisa alguma sobre ela mesma e na verdade só serviram para confundi-la com a vida.

 Nesse momento, ela queria ter uma espingarda para acertar sua própria cabeça, para que se desfizesse o código de barras infiltrado em seu código genético, código esse totalmente indecifrável e por isso nunca se abria porta alguma, pois nenhuma senha servia. 

Ela disse que essa mensageira se auto-destruiria em cinco segundos. Um, dois, três, quatro, cinco e nada de fagulhas, nem de sons ensurdecedores, nem um miolo voando. Então, ela sequer ganharia por originalidade, pois já havia Saramago escrito meio assim, meio assado. Saramago não havia tido a experiência de ser mulher, pelo menos não enquanto Saramago e ela só queria dormir para sempre, pelo menos por um ano numa cápsula, mas essa viagem seria ofertada primeiro aos mais ricos em posses e sua riqueza era imaterial. Ela não gostava de chamar de riqueza e seu coração ficou apertado tanto que parecia uma pulga. 

A exaustão fez seus olhos se fixarem no infinito, até ele se desfazer no vazio, tão vazio que fazia eco e o eco cheio de ecos na hora de dizer: “tchau, amiguinhos!” Os amiguinhos já estavam crescidos e seus rostos estavam desfigurados em nuvens de poeira cósmica. A conversa precisava acabar em algum momento, estava torturante demais aquela repetição sem fim e de repente viu que era invisível e por mais que chorasse rios e mares, não encheria sequer um copo d' água para si mesma, nem ela estava se enxergando e tudo vazaria de seu corpo arregaçado-escancarado-perplexo. Até que enfim, ninguém apareceu. Ninguém soube. Nada mudou. Só o ponto. Agora só na outra calçada. E outra descalça. Nua e se esvaindo em sangue.


Revisão: Kelly Gularte

Edição: Rosana Siqueira

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