Do pó ao pó

Melissa Coelho Xakriabá

29 de março de 2024

Ela se organizou para sair do Poço Fundo da Insanidade. Forjou nas unhas, dentes, no sangue quente das feridas, as ferramentas necessárias. Perdendo a noção do tempo. Perdendo a noção de peso corporal, perdendo conceitos que faziam sentido. Perdendo. Uma luta árdua, solitária, covarde e traiçoeira.

Quando finalmente enxergou a luz do dia no topo, seus olhos arderam e ela percebeu os lábios rachados de secura. Bem na entrada/saída do poço, havia um jovem/velho com porte de atleta de comercial. Ele tinha aquele sorriso sádico. Aquele olhar profundo, alucinado, penetrante e dúzias de frases sarcásticas e divertidas sobre a vida. Ela sorriu timidamente. Ele se aproximou dois passos. Ela sabia que conseguia naquele momento dar impulso e sair sozinha do poço, mas não o fez. Ficou se arrastando na borda. Ele deu mais dois passos e ofereceu a mão para erguê-la. Ela olhou bem e parecia que já o havia visto antes. Foi puxada delicadamente. Colocou os pés na grama e respirou como se tivesse renascido. Ele a abraçou. Ela se sentiu desconfortável, mas não o repeliu porque talvez fosse apenas o desconforto de quem ficou anos presa, e se desacostumou com as interações humanas. Ele contou tantas piadas engraçadas sobre a falibilidade da raça humana na Terra e a necessidade de se decretar falência do planeta. Ela riu de verdade. Que senso de humor refinado! 

Uma semana de contato, eles trepavam se agarrando, se mordendo, urrando, latindo e uivando. Ele a chamava de gorda, feia, desajeitada e burra. Depois dizia como ela transava bem e o quanto seus corpos se encaixam perfeitamente. Na última transa, ele a derrubara da cama e ela ficou com a testa roxa e inchada. Nada demais. Era intensidade. Era paixão. Bastava maquiar o rosto para ir trabalhar. Ela trabalhou e ninguém percebeu, porque perceber certas coisas dá muito desgaste. É muita demanda. Uma semana depois, ele quase arrancou um bico de sua mama. Inflamou. Ora, a paixão aumentava! Eles eram amantes, transantes perfeitos. 

Um dia ela ousou falar: "Sempre saio no prejuízo com você." E ele rindo como um bufão:" Você pensa o que? Toda vez você desmancha meu penteado!" Ela olhou. Não parecia um fio fora do lugar. Ela sentia até os órgãos internos fora do lugar. Tinha cistite, galos na cabeça, dor nas costas, ressaca moral, culpa, medo, desalento, confusão mental e uma sensação de esgarçamento das terminações nervosas. Não tinha sono. Não tinha fome. Não guardava dinheiro. Transavam em lugares caros, com pessoas caras em experiências caras. Ele a chamava de magrela, lenta, desorganizada e trivial. Mesmo assim, ainda dava conta de transar como uma cachorra, uma cabrita, uma égua, uma vaca. 

Ela tinha problemas no trabalho. (Bom, problemas todo mundo tem.) Tinha pesadelos à noite, crises de ansiedade. Ele era intérprete de sonhos. Tudo bem sonhar com desabamentos, sufocamento, bueiros fétidos, acidentes, amarras e correntes, macas de hospital, luzes que cegavam, figuras monstruosas, vultos invasores, possessão. Para tudo havia uma explicação lógica e irrefutável. Ele sempre tinha disposição para ouvi-la , a não ser que precisasse muito expor alguma questão pessoal dele. Na verdade, ele sempre ponderava algo pessoal, pois era um homem bastante vivido. Tanto tempo no poço ela não lembrava dos amigos. Claro, amigos são passageiros, amigos esquecem, amigos só eram amigos por interesse. Se ela nada mais tinha, que tipo de amigos conquistaria, além dele, caído dos céus e reciclador de sucatas? 

De repente, um dia ela teve um aumento absurdo das sensações e percepções. Podia ouvir uma barata voando no apartamento da vizinha de baixo. Podia ver na escuridão como se tivesse olhos adaptados. Então ela enxergou. Ele era o outro. O outro! Aquele que a ajudara a afundar no poço fornecendo as pedras que ela levou nos bolsos. Não, não, espera. Era outro ainda. Aquele... Peraí. Sim, sim! Igualzinho. Aquele que expusera fotos suas trocando a roupa no vestiário feminino. Mesmo vestiário onde abusara dela semanas depois, afinal ela queria isso desde que o conheceu. Com certeza queria porque ia no vestiário exatamente na hora do almoço dele. (Horário de entrada dela, aliás.) Não, não, não. Sacudiu a cabeça. Como podia ver tantas pessoas no mesmo corpo? Agora tinha certeza. Era o primo, incentivado pela família a bolina-la na adolescência. Sim. Não. Não. 

Era a barriga crescendo. Era uma semente brotando.  Saiu sozinha para fazer a confirmação de sua suspeita. Confirmada. Ficou entre feliz, tonta, apavorada e apreensiva É deslocada. Como contar? Qual a melhor hora? Como a notícia seria recebida? Não havia como saber. 

Contou na cama mesmo. E ele nada falou, virou as costas e dormiu.

Ela foi trabalhar e levou sua quentinha de arroz, feijão, purê de batatas e carne moída. Acabou deixando dentro do seu armário, porque a cozinha do serviço ainda estava fechada, e não teve acesso à geladeira. Esqueceu completamente. Antes do horário do almoço se sentiu mal, a pressão subiu demais e deu muito enjoo. Foi liberada mais cedo. Tentou ligar para ele, mas não conseguiu contato. 

Foi no posto de saúde. Iniciou uma medicação. Voltou sozinha para casa.

Semanas depois a auxiliar de serviços gerais da empresa onde ela trabalhava insistiu (ninguém botava muita fé nela... falava sozinha, dançava com a vassoura, enfim. Era doida, a pobre. Mas sabia limpar bem!) que havia um cheiro ruim na sala dos armários. Cheiro de podre. Identificaram que sim. Arrombaram um armário.  Tinha uma quentinha estragada de arroz, feijão, purê de batatas e carne moída. Um bloco de anotações rabiscado. Uma toalhinha bordada de rosto. Um sabonete de flores azuis. Pasta de dentes e escova lacrados. De quem seriam? Ah, sim, claro! Há quanto tempo estavam ali trancados? Ninguém sabia dizer. Talvez a auxiliar de serviços gerais soubesse, mas ninguém pensou em perguntar. 

Nada de notícias. Seguiu uma tímida investigação. Blá blá blá. Uma semana. Blá blá blá. Mais uma semana. O corpo foi achado num beco próximo ao prédio da empresa, todo embrulhado em panos velhos e amarrado com atadura. Os cabelos arrancados na raiz, cortes pelo tronco e ossos dos membros partidos. A barriga cheia de pontos arroxeados. Quem era aquela criatura, afinal? Quem conhecia? Tinha o uniforme do trabalho ainda. Mal se via o logotipo estampado no peito. 

No final das contas, a auxiliar de serviços gerais expôs o pouco que sabia. Na ficha cadastral do trabalho havia um endereço. Casa vazia, sem telefone de contato, parentes não identificados, sem email. Nada. 

Nada. Nem dado estatístico. Nem nota de rodapé. Nem uma lágrima. Um imenso buraco vazio de onde desta vez ninguém sairia.


Edição: Rosana Siqueira

Revisão: Kelly Gularte

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