Conto Diabólico

Melissa Coelho Xakriabá

10 de outubro de 2023

Ela estava ali, na mesma posição por sabe-se lá quantas horas, pensando e interrompendo os pensamentos com outros pensamentos. E assim eternamente, como um espelho que bate em outro espelho, e outro espelho e blá blá blá. Tipo um quadro do Escher mal feito. Ela estava amargando uma decisão que havia sido forçada a tomar por causa de uma série de outras decisões que se eximira de tomar. E aqui cabe mais uma xilogravura do Escher! 

Ela cansou de tanto pensar e teve raiva de ainda estar pensando, medo de nunca sair daquele torvelhinho, tristeza de ver os ponteiros girando e girando. Talvez devesse ter tirado as pilhas do relógio da parede. Talvez devesse ter escolhido  posição mais confortável para ficar estática. Foi então que ela invocou o Diabo.

Nunca achou que fosse tão rápido. Ele apareceu, sentado tranquilamente a alguns metros de distância, com as pernas cruzadas olhando-a fixamente. Ela disse um oi assustado e o Diabo nem thum. Só ficou lá. Pensou em agradecer a disponibilidade da visita, mas talvez não fosse de bom tom. Ficou reparando na beleza diabólica do Diabo. Tinha o rosto mais incrivelmente lindo do que todas as criaturas que já vira! Usava uma máscara neutra, como se entrasse na cena sem vestir nenhum personagem. Então ela ficou firme e fez uma proposta. Ofereceu a alma em troca de pelo menos um mês de felicidade suprema e ascendente. E então o Diabo se manifestou numa gargalhada tão alta e espalhafatosa que ela teve medo de acordar os vizinhos.

_Para que eu quereria tamanha nulidade?? _ perguntou o Diabo.

Ela tentou argumentar que para Fausto fora possível um trato e coisa e tal... Porque com ela não era e tal e coisa. Mas o Diabo nem deixou que organizasse a idéia.

_ Não preciso de tratos. Não sou Rumpelstiltskin. 

Ela, que adorava Rumpelstiltskin desde pequena, declarou solenemente que sabia a diferença. O Diabo virou o rosto numa expressão apaixonantemente blasè.

Pensou que talvez fosse mais fácil dialogar com um cara com chifres, rabo e pés de cabra. O Diabo de repente esboçou uma expressão de enfado, incrivelmente parecida com a que seu pai fazia. Isso antes de ter ido comprar cigarros na venda da esquina e nunca mais ter voltado para casa. Essa história clichê que, para muitos era piada, não tinha a menor graça para ela. Muito menos para sua mãe, que carregou os fardos da família inteira praticamente sozinha. Praticamente, porque uma parte a mãe jogara em cima dela ainda em sua infância. Mais uma vez de repente, se viu nua. Achou que o Diabo a penetraria, com um invejável falo, mas ele continuou parado, com as pernas cruzadas e agora um olhar interrogativo que lembrava muito seu tio Júnior.

Seu tio Júnior era um canalha que tocava em suas partes íntimas quando ficava a sós com ela. Amado e respeitado por toda a família por sua conta bancária e um emprego que alcançara na base dos favores escusos. E então, ela começou a chorar. Não de repente. Não sem motivo aparente. Chorar copiosamente, e até se esqueceu da figura do Diabo, tão inusitada visita.

Este então, calmamente, lhe ofereceu um lenço de cambraia, igualzinho ao que pertencia ao seu avô Francisco. Velho Francisco, aquele "lunático de guerra", diziam. O avô se escondia embaixo da mesa quando passava um avião. Ele jurava que eram bombas. Não sabia porque diziam "lunático", se, até onde ela sabia, não se fazia guerra na Lua. 

Pois ela aceitou o lenço e assoou o nariz.

Deitou-se com os olhos inchados, mirando o olhar do Diabo. Este então fez um gesto de despedida, pegou seu lenço de volta, e fumou um cigarro com cheiro de anis estrelado.

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