Atravessamentos

Melissa Coelho Xakriabá

2 de agosto de 2023

Ele pegou o mesmo ônibus, no mesmo horário de sempre, com o mesmo motorista que nunca respondia ao seu habitual “bom dia". Aliás, que nada dizia (nem mesmo o indispensável), com o objetivo de ir para o mesmo trabalho. Não que estivesse de fato a fim de ir, mas enfim... 

Ele era auxiliar do auxiliar do subalterno do primo do gerente (primo este cuja função era ser parente do gerente), que delegava funções que não tomava para si, jamais. Estava nesse emprego há alguns incontáveis cinco anos. Tinha a carteira assinada, pelo menos isso. Ao menos assim, diziam seus poucos amigos e assim ele repetia "pelo menos isso.", com uma espécie de desconforto inexplicável. 

Naquele dia, sabia ele, se arrependeria como sempre de não ter pego um atestado qualquer por alguma rinite, sinusite, bronquite, artrite, pancreatite, cistite, gastrite, qualquer uma dessas cujos sintomas fossem mais simples de simular e convencer qualquer cristão (ou não cristão). Era o dia da reunião geral do semestre.

Na reunião geral do semestre ouviria histórias de grandes metas conquistadas, veria fotos projetadas na telona branca dos vários momentos emocionantes e espontâneos dos colegas (que ele suspeitava não serem nem emocionantes e nem espontâneos), e ouviria textos e frases motivacionais que o deixariam ainda mais desmotivado. A maior motivação do auditório de reuniões era a garrafa de café, o potinho transparente do açúcar e os biscoitos doces e salgados que ficavam no cantinho, na mesa próxima à porta. 

Ele levantaria suas razoáveis sete vezes para servir-se do café e dos biscoitos. E alguns olhariam meio torto para ele com posturas, na sua humilde opinião, nada razoáveis. E olha que ele, com sua ativa consciência ecológica, não gastaria mais de um copo plástico, pois guardava o mesmo copinho até o fim da reunião. Depois de algumas horas todos seriam dispensados e o café teria acabado, infelizmente. 

Lá iria ele para o seu setor contando os incontáveis trinta minutos para o horário do almoço. Almoçaria rapidamente para aproveitar alguns outros minutos dando uma saidinha do prédio para sentar-se à sombra na praça, admirando os prédios próximos. Era realmente admirável como cinco anos antes tudo parecia mais bem cuidado, inclusive ele mesmo. Até o café da padaria da esquina não era mais o café de outrora. E o bolinho de cenoura com chocolate praticamente não tinha chocolate. Nem chocolate, muito menos a metafísica do chocolate, citada em alguma poesia de algum autor brasileiro desses.

À noite ele voltaria para casa no mesmo ônibus cheio e que dava a volta ao mundo em 75 incontáveis minutos. Em casa, jogaria uma água no corpo, gelada mesmo, porque água quente dá sono e com sono ele perderia seu programa favorito às 23:30. Depois do programa ele se deitaria no sofá mesmo e demoraria a dormir, pois o gato da vizinha era cantor noturno. Sonhava fazer como dona Chica e atirar o pau no gato. Porém, como na musiquinha popular o gato nem morria, e além do mais deveria ter as tais sete vidas, ele não se dava o trabalho de tentar. Não se dar o trabalho era algo que dava muito trabalho. 

Cansado, então, de tanto trabalhar, pegaria no sono finalmente até que o implacável despertador tocasse, depois das incontáveis seis horas dormindo sem sonhos. E no chão, porque eventualmente caía do sofá e nem se dava conta. Sua mãe nunca mais estaria lá para lhe afofar travesseiros e dar incontáveis três beijos de boa noite. Ela agora descansava eternamente nos eternos braços de um tal Morpheus.