Ôcantara

Stella Dias
Publicado em 19 de abril de 2024.

22 de dezembro. Sol de 40, com sensação térmica de 50. Possibilidade de fazer compras de Natal no bairro mais populoso de Madureira: Alcântara. 

Tinha de pegar o ônibus no Jardim Catarina para lá. Sim, o famoso Catarina, loteamento maior da América Latina. Lá mora meu pai, que construiu uma casa vistosa nesse lugar com paisagens nada favoráveis. Muita gente boa não as merecia; porém são obrigadas a aceitá-las. Vários trabalhadores tiveram de se manter na casa própria jamais imaginando que ali seria o apocalipse.

Enfim, o ônibus. Após uns minutos no maçarico que engole São Gonçalo em início de verão, e uns papos com passageiros à espera, o caos. Muitos tinham o propósito de descer no Alcântara para fazer compras para os seus, e muitas delas provavelmente na lojinha popular, porque o custo de vida nos cerceou a liberdade de compra. No entanto, as pessoas insistem em comprar. Foi dada a largada: as lembrancinhas estão no ar!

Dentro do coletivo era uma mistura de faixas etárias, desde bebês mamando até a paciente idosa e oncológica. A visão dos opostos, vida e uma possível morte, adentrou aquele universo apertado, cujas economias desejavam o encontro com Papai Noel.

Na descida precoce do transporte, pude constatar: o "Ôcantara" é o lugar líder em consumo na vida de muita gente, não só pelos megafones ativados anunciando promoções, mas principalmente pelo engarrafamento humano formado em todas as calçadas daquele centro comercial a céu aberto. Além disso, a disputa por uma sombrinha safada no meio da desordem é sacramentada por empurrões como as ações mais corriqueiras existentes no momento. E, no final, todos saem sãos e salvos.

Eu só queria, com minhas bolsas de presentes para alguns, retornar à casa confortável do meu pai no Catarina. No ônibus de volta, a situação inusitada (ou não) aconteceu: um rapaz entrou e, num tom intimidador, ofereceu amendoins: "se eu não conseguir o dinheiro aqui para pagar meu aluguel, roubarei à noite". Respirei fundo. Fiz uma oração para ele sair dali. Deus atendeu ao meu pedido. Eis que um passageiro comenta: "esse rapaz sempre faz isso. Ninguém aqui cai mais na dele não."

E nessa pensei na crônica de Scliar sobre o espírito natalino que, para muitos, não está na compra de presentes ou de alimentos para a ceia, mas sim no pagamento de boletos. Custe o que custar. Mas, ainda assim, a identidade linguística permanece na boca do povo gonçalense: "vamos no 'Ôcantara'?"


Niterói - RJ


Edição: Rosana Siqueira

Revisão: Kelly Gularte