Ôcantara
Stella Dias22 de dezembro. Sol de 40, com sensação térmica de 50. Possibilidade de fazer compras de Natal no bairro mais populoso de Madureira: Alcântara.
Tinha de pegar o ônibus no Jardim Catarina para lá. Sim, o famoso Catarina, loteamento maior da América Latina. Lá mora meu pai, que construiu uma casa vistosa nesse lugar com paisagens nada favoráveis. Muita gente boa não as merecia; porém são obrigadas a aceitá-las. Vários trabalhadores tiveram de se manter na casa própria jamais imaginando que ali seria o apocalipse.
Enfim, o ônibus. Após uns minutos no maçarico que engole São Gonçalo em início de verão, e uns papos com passageiros à espera, o caos. Muitos tinham o propósito de descer no Alcântara para fazer compras para os seus, e muitas delas provavelmente na lojinha popular, porque o custo de vida nos cerceou a liberdade de compra. No entanto, as pessoas insistem em comprar. Foi dada a largada: as lembrancinhas estão no ar!
Dentro do coletivo era uma mistura de faixas etárias, desde bebês mamando até a paciente idosa e oncológica. A visão dos opostos, vida e uma possível morte, adentrou aquele universo apertado, cujas economias desejavam o encontro com Papai Noel.
Na descida precoce do transporte, pude constatar: o "Ôcantara" é o lugar líder em consumo na vida de muita gente, não só pelos megafones ativados anunciando promoções, mas principalmente pelo engarrafamento humano formado em todas as calçadas daquele centro comercial a céu aberto. Além disso, a disputa por uma sombrinha safada no meio da desordem é sacramentada por empurrões como as ações mais corriqueiras existentes no momento. E, no final, todos saem sãos e salvos.
Eu só queria, com minhas bolsas de presentes para alguns, retornar à casa confortável do meu pai no Catarina. No ônibus de volta, a situação inusitada (ou não) aconteceu: um rapaz entrou e, num tom intimidador, ofereceu amendoins: "se eu não conseguir o dinheiro aqui para pagar meu aluguel, roubarei à noite". Respirei fundo. Fiz uma oração para ele sair dali. Deus atendeu ao meu pedido. Eis que um passageiro comenta: "esse rapaz sempre faz isso. Ninguém aqui cai mais na dele não."
E nessa pensei na crônica de Scliar sobre o espírito natalino que, para muitos, não está na compra de presentes ou de alimentos para a ceia, mas sim no pagamento de boletos. Custe o que custar. Mas, ainda assim, a identidade linguística permanece na boca do povo gonçalense: "vamos no 'Ôcantara'?"
Niterói - RJ
Edição: Rosana Siqueira
Revisão: Kelly Gularte