Outono – a hierarquia das vísceras

Alessandra Boos

Cartas ao sol, ao sal, 

ao vento, ao calor, 

ao frio e à umidade. 

A você.



Ilha de Santa Catarina, 20 de março de 2024.


Liberdade, 

caprichosa liberdade. 

Teria fim a liberdade? Sempre tem. Não pode ser tomada como garantida. Mas que é preciosa, isso é. Podemos ser uma pessoa livre no capitalismo neoliberal em que vivemos? É possível ser livre se não somos mestras do tempo? Qual é a margem, 

a linha de fuga, 

de escape,

de manobra disponível? Dis-po-ni-bi-li-da-de. Estar disponível para a vida. Eu estou? Eu posso estar? Hoje é o dia das perguntas. Das respostas nunca houve. Meu útero que bate, peristáltico, revoltada, querendo sair, ser livre também. Um órgão que nasceu dentro de um corpo maltratado. A hierarquia das vísceras: coração, cérebro, estômago… não seria forçado demais ficar sempre escrevendo nomes de partes do corpo? No que isso ajudaria a me conectar com o meu próprio corpo e colocá-lo na escrita? Se eu escrevesse em outro idioma, estaria escrevendo sobre isso também? As línguas que eu nunca vou estudar, escutar e falar. As línguas - outra parte do corpo. Quantas partes significam outras coisas além da parte? Precisamos de médicas de metáforas? Ou doutoras em língua portuguesa para examinar essa questão? Nem era uma metáfora, era só polissemia mesmo. Agora que tenho um corpo eu vou: comer, dormir, acordar, pensar, subir escadas, bailar, falar, me tocar, me jogar no chão, na pista, no terreiro. 

Atividades que requerem o uso de um corpo: praticamente todas. 

A vida que sorri entre os dentes. Um sorriso opaco, sujo de café e tabaco. Dente cariado. Sangue doce, coração azedo. Vamos trocar de víscera? Meu fígado, meu esôfago, meu nariz, minhas tripas, meu cerebelo… Nenhum deles têm a mesma mística do coração. 



Revisão: Kelly Gularte

Edição: Rosana Siqueira