Quando ainda não é meu aniversário

Cristina Gallas

Publicado em 21/09/23

Ando a espreitar a vida e acomodar minhas vontades e sonhos, o que faz da data de aniversário um momento reflexivo. As 24h antes desse momento representam o último dia em que ainda estamos mais novos que o seguinte. Vai daí a minha inspiração. 

Estou sozinha em terras estrangeiras, vivenciando uma experiência de desapego do que já foi para desfrutar do que posso hoje, sem muitas pretensões e sem o peso das aparências. Sou quase invisível, ninguém me conhece ou quer saber o que eu já sei da vida. Meu histórico pessoal não faz a mínima diferença. Até posso infringir alguma regra e, se isto não prejudicar alguém, só eu sei das consequências. Assim acordei eu neste 6 de setembro pensando nas 24h que antecedem mudar o número da idade.

Ainda na cama, ao abrir os olhos avaliei o espaço. Há um armário e um espelho de chão. Paredes pintadas de branco acho que para dar amplitude ou simplesmente porque o gasto monetário com tinta seria menor; tanto faz o motivo e talvez na vida isso seja uma boa estratégia também. Porque precisamos de um lugar para descansar o corpo e desligar da realidade, com as peças do corpo físico funcionando na energia mínima para a mente acomodar o significado dos sentimentos. E faz parte olhar dentro si, espelhar a essência do que somos e aceitar nosso reflexo. Podemos guardar coisas ao longo da trajetória, acumular em gavetas vontades, sonhos, conquistas, satisfações, lembranças ou decepções, tropeços, maldades, rancores, medos.... enfim em tantas gavetas para emoções e cabides para personagens  até isso  virar uma bagunça. Penso nas paredes e na possibilidade de ampliar as percepções e sentir-me mais leve. Hoje posso faxinar minhas gavetas, despir dos cabides o que não me cabe mais. Ficar só com sentimentos na intensidade necessária para me proteger, impulsionar, desfrutar e reconstruir. Deixar gavetas livres para as novas bagunças de mais 1 ano de vida e novas cores que escolher pintar as paredes. E quando esse espaço ficar no escuro, há uma lâmpada que ao alcance da mão, é só achar o interruptor.

O dia está ensolarado, propício para caminhar com um vestido esvoaçante e um chapeuzinho a desbravar as ruas.  Gosto da sensação do vento transpassando o corpo. Vou pensando que posso levitar. Circular pelas ruas, observar a diversidade humana, os grafites, o trânsito, os lugares e regras implícitas. Os papéis sociais que podem ser percebidos em detalhes sutis. Transitando tranquila posso admirar a fervura cultural de vivermos juntos numa cidade cosmopolita e as falas que não entendo e, se compreendo, apreciando ou não as opiniões, me admiro também. Há um senso de humor que só pode ser percebido no silêncio de quem não responde. São fragmentos de vozes que preenchem uma colcha de retalhos na minha mente, sendo estranho fazer parte desse coletivo sem me expressar em palavras. 

Uma rua após a outra, vou deixando para trás os anos que trago comigo. São muitas subidas e descidas, escadas, passarelas, praças, prédios,  jardins, tudo esteticamente disposto ou decadente. Admiro tudo como uma primeira vez em que posso me perder de fato e não só de mim mesma.  O final desse passeio é quando cansar o corpo, esvaziar a mente e surgir a vontade de receber o próximo dia como um início de estar integralmente comigo. O sol se pondo é uma boa dica para retornar.

Será meu primeiro aniversário sem feriado e sem família ou amigos, não haverá beijos, abraços e parabéns presenciais, nem cachorro, nem planta. Percebi que não ouvi o som da minha voz até chegar à porta do elevador. A única palavra que proferi neste dia foi ao agradecer a cortesia de alguém que esperou por mim e deu-me passagem para adentrar a caixa mágica que me permite voltar ao refúgio. Ou seja, o único som que eu emiti neste dia foi... “Obrigado”. Espero que seja um bom começo para a próxima idade que me atropela: ter mais a agradecer e menos a pedir.  

Depois de um banho volto para a cama. E antes de adormecer vem a sensação que eu sou apenas mais “um”, sou apenas “um artigo indefinido, nome e referência irrelevante, entidade física de gênero qualquer” e quanta liberdade me invade ao pensar assim.  É isso que me toma a alma e impulsiona a degustar mais um ano de vida escrevendo minha nova história nas paredes brancas. Vou dormir tranquila, pronta para  degustar meu aniversário amanhã.