O poder da imobilidade

Cristina Gallas

Publicado em 02/11/23

Faz parte de mim pensar na vida como uma jornada e, portanto, sempre há quem esteja iniciando e outros cruzando a linha de chegada. Contudo, há um descompasso nesse processo:  comemoramos aqueles que iniciam a trilha e choramos por aqueles que chegaram ao final e partem das nossas vidas. E não sabemos exatamente quanto tempo decorre entre os extremos.


É este intervalo que está permeado de possibilidades. Sabemos fisiologicamente como se dá a entrada e a saída mas o percurso vai ser construído por cada um e de forma diferente. Vai daí tanta possibilidade de conversa. Virão os conselhos, orientações, dicas, regras, protocolos, feitiços, harmonizações tudo tentando o controle e a garantia de sucesso e sorriso constantes. Como se no processo o mais importante se torne a felicidade plena e não o aprendizado, as mudanças e o aperfeiçoamento. Dor e cicatrização fazem parte. Aí o abrir de olhos e o expandir do pulmão tranquilamente se completariam no último suspiro e no silêncio das batidas do coração. 


Se viver fosse tranquilo ainda há outro dilema, o descompasso entre o corpo e a mente. Enquanto um envelhece e se degenera a cada respiração o outro envelhece e se amplia em cada conexão. Cruel e empolgante ao mesmo tempo não? Então, assim posto, é decidir o que iremos alimentar ou até que ponto nos servir para curtir uma existência sustentável. E nos coloca apenas no compromisso de viver. E isto não é nada simples. 


Viver é complexo. É substantivo e verbo, transitivo e intransitivo. Flexiona em gênero, número e grau. Algumas vezes precisa de complemento para fazer sentido e em outras já transmite a informação necessária e basta seguir em frente.  Deixar de viver é uma conversa ainda mais nebulosa. Então, o que fazemos no entremeio da chegada e partida?   


Convido a subverter a ordem, dizer que partimos quando nascemos e chegamos quando rompemos a fita desta corrida. Partimos para uma jornada única, de infinitas possibilidades e cruzaremos a linha de chegada em algum momento. Quanto mais a corrida se estende, mais presenteados somos. Rumo ao pódio e à premiação, mesmo não sabendo o que sejam. Ajustando o percurso, reabastecendo no caminho e comemorando o início, o meio e o fim.


É só uma mudança de ponto de vista.  Estamos imóveis porque não podemos subverter as etapas mas podemos ser muito ágeis e mudar a todo instante a rota a percorrer. A imobilidade da vida traz o poder de decidir o que vamos realizar, alterar posturas sem perder a rota.  


O poder da imobilidade assusta, mas não é preciso perder o medo é só se preparar para estar mais hábil para lidar com ele.